segunda-feira, 20 de julho de 2009

O primeiro avião de Dumont

Agitava o lápis, nervosamente, entre os seus longos e delgados dedos. Pálidos e gélidos. Resultantes da fusão familiar de franceses com portugueses. Miscigenação, típica, para a maioria dos brasileiros daquele período pré-republicano. Eram sete e trinta e cinco da manhã. Aula de álgebra no imponente colégio Culto a Ciência, de Campinas, interior de São Paulo. Devidamente, uniformizados e disciplinados, os alunos, essencialmente meninos, buscavam a solução para a pequena pauta de 52 exercícios aplicados pelo professor Adolf Hitler, um senhor de barbas podadas, um bigodinho um tanto cafona, compridas costeletas, e um cabelo embebido em algum tipo de cera desconhecida. Tão ríspido e tão exigente, como um ditador que, a milhas dali, maquinava algum plano sanguinário contra toda a Europa.
(...) a extremidade, oposta à grafite, tocava incisivamente a carteira escolar, extraindo um barulho contínuo e ordenado. Um som cantava oco, pelo fato da mesa possuir um tampo, que levantado, permitia o acesso a um compartimento interno, onde os estudantes guardavam livros e alguns pertences sagrados, como bolas de gude, pão recheado com geléia de damascos, de alguma tia gorda, e uma rã, especialmente reservada para aquela professora de nariz comprido e boca achatada. Mas neste dia, nada havia dentro da cavidade, o que proporcionava uma amplitude, ainda maior, a este comportamento típico das pessoas ansiosas.
O incômodo era visível. Podia sentir à sua volta a impaciência e o enfado de seus colegas de classe. Mas, certamente, havia uma explicação lógica para tudo aquilo: Alberto Santos Dumont, buscava, concentração. Corrijo, observando, que se tratava de uma explicativa, mais EMO-tiva, que racional. Seu coração batia acelerado. Os dedos que ainda pouco referira, suavam. Sentiu uma gota escorrer por debaixo do couro cabeludo. Prendeu a respiração. Estancou. Quebrou o lápis. Silêncio absoluto. Todos se entreolharam. Por sorte o tirano, concentrava-se na leitura tão preciosa de seu Correio Popular, por certo, Deus o mantinha dormindo por detrás daquelas laudas enfadonhas (Velho Babão!). Santo nariz de cera jornalístico. Esperou que a nuvem carregada de espanto se dissipasse, quando lentamente fechou os olhos e deslizou as mãos sobre o papel, deixando cair, silenciosamente, o lápis sobre a carteira.
De olhos cerrados, o jovem franzino, no auge de seus 14 anos, voltava há alguns meses atrás, ainda nas férias de janeiro, aos saudosos 13 anos que não pareciam querer ir embora. Era um menino do interior. Adaptando-se a espantosa vida da cidade. Contudo, não esquecia a fazenda, os tratores e as locomotivas que aprendera a pilotar, tão cedo. O cheiro do capim molhado e dos pássaros que voavam sobre a pastagem, que tanto prezava. De ficar com os olhos esbugalhados, vendo as aves de asas compridas, subir e descer, subir e descer. Suas férias de janeiro, tinham sido fantásticas, inesquecíveis. Mas o que o atormentava agora com tamanha força, não era a saudade do capim molhado, das aves que voavam ao longe, do cheiro do óleo queimado do trator. Eram os olhos dela. O beijo que o levara até as alturas.
A filha do caseiro da Fazenda Arindiúva. Mariana, tão doce, Mariana. Os olhos amendoados. Descendente de italianos, misturada a uma cor, evidentemente, brasileira. Um sorriso largo, um andar preguiçoso. Aonde escondia esta ave singela, por todos estes 12 anos? O que houve com aquela pata feia, de sardas amareladas? – calculava Alberto, no assombro do x + y = z.
Correram até o fim da imperiosa plantação de café. Ele, depois ela. Até as forças cessarem, os pequenos pulmões implorarem. Mariana, apoiando sua cabeça, sobre os ombros do nosso protagonista, com a impetuosidade característica essencialmente às mulheres deste país, aproveitando-se da fraca resistência do jovem Dumont, lhe tascou um beliscão por entre as costelas.
- Menina doida!, disse.
Os dois se olharam, repletos de raiva. Estranhamente, de raiva, um ganhou o primeiro beijo do outro. O coração quase lhe saltava pela boca. Pode ouvir ao longe seu pai gritando umas palavras, que lhe pareciam familiares. Já não podia ouvir. Estava à milhas, longe de alcance, flutuando em algum lugar do espaço.
- Alberto Santos Dumont!, a voz grave ecoou.
- Desculpe mestre, estava distraído!, acordou de súbito.
- Pelo que vejo anda voando de novo filho. Vai perder de vista o balão, disse carinhosamente, Henrique Dumont.
Dumont filho pôde perceber que não estava na sala de aula. Novamente, estava divagando. Lembrou-se enfim, dos seus atuais 15 anos, que estava em São Paulo, de férias com a família. E que aquele gigantesco balão, que voava ao longe, o levara à primeira sensação de vôo que tivera na vida. E a certeza, que carregaria para o resto de seus dias:
- Irei voar por muito mais vezes.

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